Quase diário da pandemia

Enquanto espero a cura
Há mais borboletas na janela
Há mais passarinhos voando
Há mais abelhas zanzando
Estou menos apressada
Percebo
Algumas conversas
parecem mais sinceras
Em cada canto do planeta
O silêncio refaz caminhos
Os bichos reencontram árvores
Quando a tempestade passar
Vai haver relatos
De quem trabalhou
De quem esperou
De quem negou
De quem se curou
De quem partiu
Quando a tempestade passar
Imagino o luto, a dor
Vai haver lamentos
Imagino o alívio, a alegria
Vai haver festejos
Talvez haja menos disputas
Imagino a sede de abraços
A natureza ensina sabedoria
Os oceanos estão se refazendo
Quando a tempestade passar
Talvez o amor aconteça
Amor na devoção da alma
Um rio transbordando
Quando a tempestade passar
Desejo explodir paredes

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Antes do colapso
Meu corpo não sabia se mover embaixo de nuvens gordas
O mormaço tornava as noites insones
Durante o dia os braços e pernas cansados
Ainda tentavam remar
Eu ouvia ruídos, rumores e lia relatórios náuticos, aéreos, rupestres, telúricos
O mormaço se apresentou de múltiplas formas
Ampliou incompletudes
Busquei forças divinas
Bebi em mais de uma fonte
Encontrei algum acolhimento
Para os pensamentos e sentimentos imperfeitos
E apesar das evidências me faltou senso de previdência
O meu bunker, nave, navio é hilário, singelo, precário
Me cerquei de plantas, livros, discos, altares discretos
Ao menos aprendi a desacelerar

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O mormaço não me preparou
Para o tempo de reclusão
Estou abrigada da tempestade
Mas não abrigo a aflição
Caminho dentro de casa
Ajusto incompletudes
Reduzo a bagunça da caixa sem trancas da cabeça
Há desabrigo em cada cidade
Em cada comunidade
Em cada bairro
A pandemia se espalha
Brinco com cada nada de cada parede
Abrando o espanto
Faço comida
Lavo cada prato com atenção
Lavo as mãos
Limpo os medos
Cuido das plantas
Encontro algum chão

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Hoje eu não encontrei pedra no feijão
Cada pedaço de batata, abóbora, tomate
Eu cortei com esmero
Lavei as mãos
Tentando me livrar do cheiro da cebola
Eu fiz comida
Sem aperreio
Mas lembrei
Na adolescência
Um certo dia
Eu catei feijão
A minha mãe reclamou da demora
Eu catei feijão
Separando com cuidado cada pedra
Demorava
O feijão
Comprado na feira
A granel
Era cheio de tranqueira
Eu me apressei
O meu pai estava doente
O almoço saiu na hora certa
Cortei legumes
Fiz arroz, carne
Farofa
Almocei
Tomei banho
Me arrumei
Sai para o colégio
A minha mãe nem sabia
Um dia eu estaria
Olhando cada grão de feijão
Com paciência
Até com amor
Posso nomear este momento como:
Zen e a arte de cozinhar feijão (1)
Nunca me gabei de prendas domésticas
Eu queria evitar ser refém da repetição
Hoje encontrei uma certa dignidade
E até mesmo alegria
No cotidiano da cozinha
Eu fiz comida com esmero
.
(1) Uma citação ao título do livro “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”. Robert M. Pirsig

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O camponês
Plantou milho
No mês de março
Na intenção
Das espigas
Estarem prontas
Na festa do São João
Num pé de milho crescendo
Há tanta esperança
Neste mês de junho
Posso usar as bandeirinhas para enfeitar a casa
As ruas talvez estejam vazias
Não vou comprar
Comida de milho na barraca da esquina
Mas se tocar Gonzagão
Hoje mesmo
Vou dançar forró
Talvez eu
Cozinhe munguzá
ou canjiquinha
Viva São José
Viva São João
Eu já não sei do futuro
Quero viver o presente
A pandemia cortou qualquer coisa
A pandemia soltou qualquer coisa

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Acordei
Demorei
Para sair da cama
Afastei o lençol e os temores
Levantei
Tomei banho de sol
Olhei as plantas
Vasculhei folhas e caules
Tentei cancelar pulgões e outros bichos
Sentei
Li as notícias e postagens
Na bolha do Facebook
São muitas lives e tragédias
Cada pessoa em seu canto
Em cada canto uma crise
Uma grande arte é ficar bem
Estamos a deriva
lve-se quem souber cuidar da vida
Eu fico em casa

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Era uma sexta-feira, treze de março
Era inevitável encarar a epidemia
Eu comecei a organizar a reclusão
Não foi preciso tantas providências
Eu já vivia numa certa misantropia
Hoje completa um mês
No final da manhã fiquei sabendo da partida do Moraes
Li as notícias e notas nas redes sociais
Os pensamentos ficaram disparados
Ouvi canções do baiano pernambucano
Fiz serviços domésticos
Lavei muitas vezes as mãos
Comecei uma coisa e outra
Cantarolei
“Acabou chorare no meio do mundo
Respirei eu fundo
Foi-se tudo pra escanteio”
Olhei a paisagem
Olhei o céu
Olhei a mangueira
A árvore na frente da minha casa
No verão ofertou muitas frutas
Já está em outro ciclo
Depois do período de chuvas
Pode ser que bichos invasores se aproveitem
Numa outra estação vai soltar folhas
Na primavera vai florir
Cada ciclo cumpre uma função
Este momento é de recolhimento
Pretendo atravessar este inverno
Com serenidade
Mas não sei como vou enfrentar
Cada despedida
Nos últimos anos eu vivi alguns lutos
Sei como dói cada partida
Em contrapartida
Ganhei amor pela vida
Valorizo ainda mais o pulso que pulsa
Algum dia quero me chamar resiliência
Cada árvore existe em rede
Realizam trocas
A árvore Moraes partiu deixando frutos alegres
Cantarolo agora as ladeiras de um Brasil que despenca
Olho para a fortaleza chamada mangueira
Ela vive cada ciclo
Pode ser que eu aprenda a me defender de bichos invasores
Pode ser que eu aprenda a florir
A natureza ensina
Falta aprender
.
*Acabou chorare (Galvão e Moraes Moreira)

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Choveu muito nos últimos dias
Jardim infestado de pulgões e colchonilhas
Pulverizei uma calda com água e sabão
Trump não deixa que material hospitalar chegue ao Brasil
O Ministro da Saúde é um herói?
Quem possui um olho é rei
Vivemos como astronautas
Cada família em sua nave
Mantimentos reduzidos
Na distopia há fragmentos de distração

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Na memória afetiva sabores, cheiros, cores
Peixe ao coco, camarão e todas as comidas da páscoa
A minha mãe fazia um feijão de coco impecável
Cocadas, bolos, beijus, adoooro
Hoje vivo uma situação atípica
Não há almoço de páscoa
O encontro da família não há
E está tudo bem
Jesus veio ao mundo alterar padrões de comportamentos
A sua missão foi ensinar o amor
Exemplificou valores
Solidariedade, fraternidade, alteridade
Tolerância
Tanto tempo se passou
A sociedade atual mergulhada no consumismo, individualismo e cegueira
A criação e o abate de animais em escala industrial
destroem muitas vidas e ecossistemas
Diversos vírus e epidemias são resultados dessas atrocidades
Eu nunca fui vegetariana, tanto quanto gostaria
Eu nunca participei de uma religião mas tenho o maior respeito pela história de Jesus
Cada situação da vida exige atitude
Esta semana nem pensei em comprar
Peixes e frutos do mar, nem mesmo chocolate
Poderia ter pedido numa entrega em domicilio
Seria mais um movimento de risco
Perderia uma ocasião de exercer alguma coerência
Não quis
Quando vi ontem fotografias de pessoas lotando os mercados e supermercados
Achei triste
Vi a miséria e a ganância juntas da ignorância
E muitos kilogramas de compulsão
O luto que hoje vivemos
deriva desse caldeirão indigesto
Jesus Cristo continua sendo negado

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Em cada célula há mobilidade constante
Em cada recanto de vida há desejo de expansão
O universo vive em cada pessoa
Cabe em ninguém
Hoje eu lavei muitos pratos
Coloquei roupa na máquina
Hermano limpou a casa
Colocamos o lixo para fora
Eu não queria fazer tantos serviços domésticos
Mas foi inevitável
Amanhã desejo focar em demandas profissionais
Eu conversei com a minha filha
Todos os dias temos conversado
Fiz sopa de legumes e outras comidas
Antes precisei de produtos de farmácia
Aumentaram os preços de tudo
Capitalismo selvagem, oh
Lavei as mãos muitas vezes com água e sabão
O dia todo estive ocupada
Nem acompanhei as noticias do Ministro cai mas não cai
O mais catastrófico é que a China vai comprar soja nos EUA
O navio afunda um pouco mais
Desejo que alguma estrela
Envie um raio atingindo a ignorância e a cafajestice
Esta pandemia pede uma repaginação do mundo
Algum salto vai acontecer?
Para onde estamos indo?
Estamos numa quase lua cheia

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Sofá, móvel mais generoso da casa
Oferta conforto e abrigo
Feito de madeira, pano e espuma
Parece conter em sua estrutura um afeto sincero
Aceita a minha preguiça
Neste domingo, neste pedaço de mundo sinto o corpo fugir
Parece louco falar do corpo como se não fosse eu
Mas nem sempre observo cada pedaço
Um dedo do pé tenta chamar minha atenção
Neste agora, respiro, aspiro, conspiro

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Dei um nome ao pássaro pendurado perto da janela
Ele passa a se chamar: falcão
Não sei se vou aceitar este nome por muito tempo
Não se parece
Talvez seja um bem-ti-vi
Sei lá
Foi o nome que apareceu
Eu estava organizando pastas de trabalhos
A distração foi cortar papéis
Agora a distração é balançar os pés enquanto digito este texto
A pandemia me deixou mais presente
Mais disposta
Mais atenta aos diversos movimentos da casa
Cada formiga que passa eu tento observar para onde vai
Qual o lugar do esconderijo?
Quais folhas carregam?

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Faz alguns meses quando comecei a tetralogia de Elena Ferrante devorava as páginas
Estou quase terminando e leio cada pagina devagar
Faz muitos anos, quando terminei “Cem anos de solidão”
Depois de fechar o livro
Passei alguns dias em Macondo
Fascinada pela saga dos Buendia
Quando li “São Bernado”
Passei alguns dias sendo Madalena
Um livro abre portas
Nem sempre sei voltar
Nestes dias vou precisar retornar de Nápoles
Talvez eu não seja a mesma pessoa
Conheci Lenu e Lila
Mulheres Reais
Ambivalentes
Complexas
Estou lendo sem pressa
Caminho pela casa
Leio em voz alta
Respiro
Hoje também li notícias
Os primeiros dias da quarentena havia uma pressa em organizar melhor a casa para nela ficar
Começo a observar a existência de um luto
As vezes tenta voltar um sentimento conhecido
Faz tempo que eu vivo num mundo em ruínas
Faz tempo que busco a fresta de luz q surja depois do dia seguinte
Hoje resolvi pendências
Conversei
Trabalhei
Cuidei das plantas
Colhi gengibre
Andei pelos arredores da casa
As plantinhas estão bem
As borboletas continuam beijando as flores
A natureza continua bela
Eu continuo buscando uma fresta de luz que ilumine os dias seguintes às despedidas

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Mesmo sem sair de casa
Lavo muitas vezes as mãos
Mesmo sem risco aparente
Gasto muita água
Gasto muita culpa
A consciência ambiental carece de coerência
Eu me aconselho: calma
Tento lidar com a paranoia, culpa, busca de solução
Pela manhã cuidei das plantas
A tarde não achei o carregador de celular que se escondeu num canto inusitado
Fiquei duas horas sem usar o aparelho telefônico móvel
O mundo não se importou se eu fiquei sem conexão
Lavei as mãos
Passei hidratante na pele
Li algumas páginas de um livro
Deixei de lado
Lavei as mãos
Fiz café
Tomei muito café
Passei mais hidratante na pele
Reclamei da chuva que escureceu a tarde
Achei bom a chuva que reduziu o calor
Caminhei dentro de casa
Lavei as mãos
Voltei a organizar uns trecos
Arrumei a casa tentando arrumar a cabeça
Marisa Monte canta: ”Em alguns instantes sou pequenina e também gigante”
Meu corpo quer dançar
Meu coração tá quase bonzinho

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Hoje senti pressa
Hoje senti raiva
Vontade de gritar
Uma dupla tragédia acontece no Brasil
Panelas, apitos, berimbaus, trompetes, guitarras e buzinas
É dia de fazer barulho
Venho fuxicando comigo
no meu quintal mais interno
Venho me cuidando
No domingo fiz bolo de aveia com banana
Hoje vou fazer sopa de legumes
Tomei pela manhã chá de canela com gengibre
Água com limão
Água com Própolis
Chá de cidreira a noite
Manjericão no molho
Cada dia uma comidinha
Cada dia uma mezinha
Hermano tem feito tapiocas maravilhosas
Venho conversando com a minha filha
Estou cuidando bem das plantinhas
Estou cuidando de mim
O desaforo maior é me manter viva
O plano é ficar em casa
Cruel mesmo é quem nem tem casa para morar
Cruel mesmo é quem mora em lugares precários
O capitalismo é uma crise medonha corroendo um planeta dadivoso
Hoje é dia de fazer barulho

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Abro as janelas do sábado
Borboletas aparecem
Amarelas, brancas, cinzas e brancas
Desejo fazer um acordo
Peço respostas
Depois da tempestade, a bonança vai chegar?
Alguma hora vou sair do casulo?
A escuridão mora no agora
A luz pode nascer depois de não sei quando

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